sábado, 27 de setembro de 2008

Eleições, representatividade e outras enganações


por ORGANIZAÇÃO RESISTÊNCIA LIBERTÁRIA (ORL)

Exatamente no momento em que o capitalismo arrasta a humanidade para
impasses cada vez mais profundos e à medida que a dinâmica da economia
mundial reduz cada vez mais as margens de atuação dos Estados nacionais,
tornando-os a cada dia mais impotentes para conter o aumento da miséria e
das desigualdades sociais, minando assim as bases de sua legitimidade, a
esquerda, assim como a direita, nos oferecem mais uma vez o mito das
eleições e da democracia representativa como remédio para todos os males.
Em vez de um chamado à luta contra a sociedade do capital, nos convocam,
em coro afinadíssimo, a renovarmos nossa fé nos políticos, no Estado e no
próprio capitalismo.

Nada mais natural do que isso, e seria absurdo esperar o contrário. Afinal
de contas, pese às diferenças que ainda possam existir entre direita e
esquerda (e elas são cada vez menores e menos perceptíveis!), ambas
colocam-se num mesmo círculo de fogo que limita suas disputas ao controle
do Estado burguês e à conseqüente e inevitável defesa da ordem
capitalista.

AS ELEIÇÕES E A MISTIFICAÇÃO DO ESTADO

As eleições, ainda que sejam apresentadas como o ápice, e muito comumente
como a única forma de participação política nas sociedades de capitalismo
democrático, são na verdade uma mistificação conservadora e uma forma de
alienação política, visto que tratam sempre de uma transferência de poder
para outros e do abandono da luta direta contra o capital em nome de
medidas reformistas e democratizadoras, hoje cada vez mais difíceis de
serem realizadas.

Durante mais de um século, as esquerdas, tanto quanto a direita, prestaram
ao capital o precioso serviço de mistificar o papel do Estado e ajudaram a
disciplinar e circunscrever as lutas no interior da sociedade capitalista
aos limites da institucionalidade burguesa.

A direita cretina sempre mistificou o papel do Estado, porque afinal de
contas ela é naturalmente uma defensora ardorosa da barbárie capitalista,
e por isso, sempre se serviu do Estado para defender a ordem e os
interesses da classe dominante. Já a esquerda reformista (e também a
bolchevique!), também mistifica o Estado na medida em que o considera como
um instrumento, que tanto pode ser colocado a serviço da burguesia como da
classe trabalhadora, dependendo de quem o controla. É nessa visão
instrumental que ela vai buscar justificativa e legitimidade para seu
projeto político de controle do aparelho estatal. A mistificação, neste
caso, consiste em abstrair o Estado da rede de relações sociais
capitalistas da qual é parte e apresentá-lo como um ente autônomo em
relação ao capital. Dessa forma, o Estado é apresentado de forma
invertida: de agente ativo do processo de dominação capitalista e defensor
dos interesses da classe dominante, ele aparece como principal agente de
mudança e defensor dos interesses da classe trabalhadora.

A própria realidade da economia capitalista atual se encarrega de
desmentir essa mistificação, visto que hoje ela possui uma capacidade
inigualável de se impor aos Estados nacionais, reduzindo cada vez mais
suas margens de autonomia para definir até mesmo suas prioridades de
investimento. Estes se direcionam cada vez mais para atender o setor
privado, ao passo que diminuem no setor público, degradando cada vez mais
os serviços públicos fundamentais como saneamento, saúde, educação,
previdência, etc. Mesmo os Estados mais poderosos tiveram que adaptar-se
aos imperativos do capital mundializado, de forma a muni-lo de condições
favoráveis de lucratividade, encarregando-se de providenciar-lhe recursos
e meios institucionais que lhe garantam apropriar-se destrutivamente dos
recursos naturais e arrancar sem dó o couro de uma força-de-trabalho cada
vez mais fragilizada e em condições de super-exploração.

Por outro lado, é exatamente porque o capitalismo provoca um aumento da
exploração e das desigualdades, que ele também provoca incessantemente a
necessidade de conflitos sociais. Como não pode fazer um uso generalizado
da violência, e ao mesmo tempo precisa resguardar o domínio do capital e
da classe dominante contra ataques ameaçadores, o Estado é obrigado a
recorrer constantemente a mecanismos institucionais de arregimentação e
disciplinamento das lutas.

Trata-se sempre de tentar circunscrever as lutas aos limites da
institucionalidade e as disputas políticas internas ao sistema
representativo burguês (eleições, disputas entre esquerda e direita, etc.)
como forma de desviá-las do combate direto contra os poderes econômicos e
estatais. Não foi por outro motivo que a sociedade de mercado convenceu-se
já faz tempo que pode conviver tranquilamente com a democracia
representativa, com eleições livres e com governos de esquerda, fazendo
disso poderosos elementos de pacificação social.
A MENTIRA DA REPRESENTAÇÃO
O governo representativo não é o governo do povo e a democracia burguesa
não é um instrumento de participação direta e de controle efetivo da
maioria sobre a sociedade. Ela é, pelo contrário, uma garantia de que essa
participação e esse controle não se tornem possíveis. A idéia de que o
eleitor decide os rumos da sociedade por meio do voto é uma mentira
descarada, que a vida real desmente o tempo inteiro e que serve apenas
para mascarar as brutais desigualdades de acesso e exercício efetivo do
poder político existentes na sociedade, decorrentes das diferenças de
poder econômico.

A verdade é que cotidianamente “o cidadão comum”, o mesmo que é bajulado e
acariciado nas campanhas eleitorais como soberano e senhor dos rumos da
sociedade, é distanciado dos processos de decisão política na esfera do
Estado, que no geral são tomadas sem o seu conhecimento e à revelia dos
seus interesses e das suas necessidades concretas. Além disso, “a mão que
afaga, é a mesma que apedreja”: toda vez que se organiza para conquistar
seus interesses por meio de sua própria luta, ele é obrigado a enfrentar a
violência da polícia e da justiça do Estado. Apenas um minuto depois de
votar o eleitor volta a ser o escravo de sempre, entregue às suas misérias
cotidianas, explorado, humilhado, visto com desprezo e chicoteado pelo
patrão, pela polícia e pelos carrascos que ele próprio elegeu.

As eleições revelam-se assim apenas um jogo sujo, no qual se simula a
busca do bem-comum e o atendimento das demandas e necessidades dos mais
pobres. O que se esconde, e cada vez pior, por trás do cinismo e da
canalhice das propagandas eleitorais, é a disputa pela obtenção de
privilégios materiais e políticos por meio da conquista de cargos no
Estado e da rapina dos recursos públicos para atender a interesses
particulares de parlamentares, dos partidos e frações de classe dos quais
fazem parte, e ao fim e ao cabo, voluntariamente ou não, garantir a
continuação de um sistema social desumano e injusto.

A representatividade é uma grande mentira, na medida em que a garantia de
direitos políticos formais é incapaz de garantir até mesmo a satisfação
das necessidades mais elementares de um número crescente de pessoas. A
sociedade capitalista zomba dessa legião de famélicos miseráveis que se
multiplicam como coelhos pelos campos e cidades do Brasil e do mundo. Eles
não possuem poder para decidir sequer se irão comer, se poderão cuidar da
saúde ou se terão um teto para morar. Esta é a grande barbárie que os
sistemas representativos se propõem ocultar e perpetuar.

A CRISE DA ESQUERDA

A crise da esquerda brasileira não é simplesmente um resultado do
descrédito provocado pelos escândalos do PT e do governo. Na verdade, o
que os petistas tornaram evidente foram os limites e o fracasso do próprio
projeto político da esquerda de privilegiar a via eleitoral e a conquista
do Estado. Em primeiro lugar, por que sua legitimidade é minada pela
própria crise do Estado, que não pode ser usado para promover políticas
reformistas de impacto e nem reverter o avanço da degradação das condições
de vida. Ela só pode governar em conformidade com as regras e os limites
institucionais de um Estado totalmente inserido e entregue aos ditames da
economia mundial, que ela pode até criticar enquanto ainda não é governo,
mas que querendo ela ou não, é obrigada a defender quando governa. Ao fim
e ao cabo, esta acaba sendo a principal condição de sua governabilidade.
Seu governo torna-se algo assim como um violino: a gente segura com a
esquerda e toca com a direita!

Em segundo lugar, por que as próprias disputas eleitorais obrigam os
partidos a afastar-se cada vez mais de suas aspirações programáticas de
cunho socialista (os que ainda possuem alguma!). Ainda que sigam mantendo
um discurso folheado por uma dourada retórica da ética e do socialismo,
seu “radicalismo” acaba sendo proporcional ao seu crescimento eleitoral e
político. Se quiserem disputar e ganhar eleições, precisam fazer
concessões à mentalidade paternalista e clientelista que são a marca
registrada das eleições no Brasil, visto que somente uma minoria vota por
concepções ideológicas ou baseada em identificações de classe. Além disso,
se não quiserem condenar-se à insignificância eleitoral dos pequenos
partidos, sem estrutura e sem recursos, os que querem ganhar eleições
precisam amarrar alianças oportunistas e recorrer a fontes de
financiamento capitalistas. Exemplo disso é a candidatura de Luciana Genro
(PSOL) à prefeitura de Porto Alegre, que recebeu 100 R$ mil reais da
Gerdau, o equivalente a 15% da verba prevista de campanha, que é de 700 R$
mil. A direção municipal do partido confirma e justifica: “É lógico que
seria muito melhor se os trabalhadores tivessem recursos para garantir o
financiamento de nossa campanha a partir de suas decisões soberanas. Mas
esta não é a realidade hoje. A opção de não aceitar recursos empresariais
em nenhuma hipótese, neste quadro, seria a de não realizar a campanha com
força de massas e com capacidade de disputa”. Interessante notar que,
contraditoriamente, a candidatura à prefeitura de Fortaleza pela Frente de
Esquerda Socialista (PSOL/PSTU), cujo candidato é Renato Roseno,
orgulha-se de dizer na sua propaganda política que não aceita receber
dinheiro de empresas, apenas de indivíduos. Posição que apenas o condena a
continuar eleitoralmente inexpressivo! São as regras do jogo...

A esquerda eleitoreira não tem como escapar da armadilha e precisa
legitimar o processo viciado das eleições, afinal de contas, é disso que
dependem os cargos, as contas do partido, os altos salários dos
parlamentares e assessores, os privilégios e posições de poder das
lideranças e burocratas partidários e até a ascensão social de uma parte
da militância. De meio, o partido passa a ser um fim em si mesmo, que
passa a viver da política e do Estado. Aquilo que ainda existe de luta é
substituída pelas disputas por cargos e pelo recolhimento às tarefas
administrativas e burocráticas, a utopia cede lugar ao realismo político e
a independência de classe às alianças oportunistas e à dependência
financeira, e, por fim, de atiradora de pedras ela passa a protetora das
vidraças.

AUTONOMIA, AÇÃO DIRETA E AUTO-ORGANIZAÇÃO ANTICAPITALISTA

A construção de resistências anticapitalistas exige desde já o abandono
das ilusões em torno dos que ainda advogam uma convivência pacífica entre
as classes e a idéia de que é possível humanizar e administrar o
capitalismo por meio do Estado e de políticas reformistas. Ao rejeitarmos
o capital, o Estado e sua democracia representativa, propomos como
alternativa a autonomia, a ação direta e a auto-organização das lutas
anticapitalistas. Defendemos o desenvolvimento de movimentos e lutas
sociais que sejam combativos e façam o uso mais amplo possível da
autonomia e da ação direta, ou seja, da capacidade de definirem seus
próprios objetivos, métodos de organização e de luta de forma
independente, sem submeter-se a qualquer partido político, governo,
empresa, etc. Ao contrário da representatividade, que consiste em
transferir a iniciativa e o poder para outros, na ação direta o que se
busca é a restituição da capacidade de decisão e ação que nos é alienada,
evitando assim que interesses contrários se sobreponham aos nossos.

É na luta que se aprende a lutar! Ela é uma ferramenta pedagógica que
impulsiona a reapropriação do poder de agir e decidir sobre nossos
próprios destinos, restabelecendo laços de apoio mútuo e de solidariedade
essenciais entre os protagonistas de um novo devir. Por isso, acreditamos
que os movimentos sociais e demais organizações populares devem buscar
formas de tomadas de decisão baseadas na democracia direta e na
auto-organização, decidindo seus rumos em assembléias horizontais com
participação igualitária e não-hierárquica, a partir dos locais de
moradia, trabalho, atividade cultural e estudo.

Por esses motivos, a Organização Resistência Libertária não se propõe a
funcionar para si mesma, mas a ser um instrumento inserido nas lutas
populares e nos movimentos sociais. Nossa inserção nestas lutas não visa
de forma alguma dirigi-las ou submetê-las a nossos próprios interesses,
mas contribuir para impulsioná-las, estimulando a autonomia, a
combatividade, a ação direta e a democracia direta, contribuindo para que
estas lutas ultrapassem as reivindicações imediatas, e assumam um caráter
revolucionário e de afirmação da necessidade de superação da sociedade
capitalista.

Vote nulo ou não vote!
Contra a farsa da eleição, autonomia e auto-organização!
Setembro de 2008

* Caixa Postal: 12155 Fortaleza - Ceará
* e-mail: resistencialibertaria(a)riseup.net

http://www.anarkismo.net